Este texto é escrito com a consciência de que a prostituição não é um marcador exclusivo na vida de travestis, sendo uma realidade presente tanto dentro quanto fora da comunidade T. Ao longo da história, travestis foram empurradas para a prostituição como uma das únicas formas de sobrevivência, seja pelo abandono familiar ou pela falta de oportunidades, ambas consequências da transfobia. Contudo, a prostituição não precisa ser uma obrigatoriedade; pode também ser um ponto de ressignificação e criação de novas possibilidades. Este texto busca mostrar que é possível ocupar outros espaços com força, criatividade e liderança, transformando não apenas trajetórias individuais, mas também as narrativas ao redor.
A Prostituição e a Importância de Ressignificar Histórias
Historicamente, a prostituição foi uma rota de exclusão e violência para travestis, mas, também é quando parte delas encontram e desenvolvem suas redes de apoio, de solidariedade e resistência, uma vez que nas ruas só podem contar com outras iguais. Neste contexto, não se trata apenas de uma questão econômica – a necessidade concreta de vender a força de trabalho ou realizar atividades sexuais como meio de sobrevivência – mas também um instinto de sobrevivência social. Isso se fundamenta na reprodução da cultura e nos desejos sociais, incluindo a luta contra a solidão. Por muito tempo essa foi a única história contada sobre travestis. Nas redes sociais, muitas travestis encontram hoje a oportunidade de contar suas histórias por um outro viés: o de quem vive e sobrevive nesse meio, sem serem reduzidas a “objetos de pesquisa”. Com humor, crítica e coragem, essas criadoras desenvolvem conteúdos autênticos e desafiam percepções estigmatizadas.
De fato, as travestis que ocupam esse espaço têm transformado o modo como a prostituição é percebida pela sociedade. Regina Facchini, em seu texto “Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90”, fala sobre a marginalização e o agenciamento de travestis na prostituição. Nesse contexto, as travestis desenvolveram uma consciência coletiva que permitiu transformar experiências de violência em formas de resistência política e cultural. Isso pode incluir o uso estratégico das redes sociais para narrar suas histórias a partir de um olhar interno, que revela não apenas o cotidiano do trabalho sexual, mas também suas vivências em torno de afeto, pertencimento e busca por autonomia. Essas narrativas oferecem uma nova lente que desconstrói os discursos patologizantes e marginalizados que historicamente marcam suas existências.
Da Representatividade a Autonomia
As travestis sempre tiveram a sua própria voz, mas historicamente essas vozes foram silenciadas ou distorcidas socialmente e, principalmente, midiaticamente. Veículos de comunicação continuamente preferiram perpetuar estigmas e narrativas preconceituosas. Nos últimos anos, no entanto, muitas travestis têm utilizado estrategicamente as redes sociais como ferramentas para ocupar espaços e transformar consciências coletivas.
Plataformas como Instagram, TikTok ou YouTube são cenários onde novas gerações de travestis compartilham suas histórias com humor, ironia e autenticidade, desconstruindo estereótipos e confrontando o preconceito. Não é, necessariamente, a plataforma que as confere agência, mas a habilidade dessas criadoras de transformar o ambiente digital em palco para representatividade e informação.
Por meio de conteúdos estratégicos, elas estão reescrevendo suas trajetórias e movimentando estruturas sociais que antes lhes negavam oportunidades, mostrando que a representatividade, ainda que online, é uma força transformadora. Essas iniciativas não apenas humanizam as experiências das travestis, mas geram impactos reais na sociedade, promovendo mudanças de comportamento e ampliando acessos a direitos como educação, trabalho e cidadania.
É fundamental destacar que as travestis não se restringem ao estereótipo de marginalização que a sociedade insiste em reforçar. Elas também estão nas universidades, produzindo ciência, desafiando epistemologias tradicionais, ocupando cargos públicos, contribuindo para a construção de políticas inclusivas, liderando em organizações privadas e no terceiro setor com estratégias inovadoras. Além disso, estão empreendendo seus próprios negócios, criando alternativas sustentáveis de renda e impactando positivamente sua comunidade, de maneira criativa e resiliente. Essas trajetórias evidenciam o quanto as travestis, quando têm acesso e oportunidade, transcendem as barreiras impostas pela transfobia e contribuem de maneira plural e significativa para a sociedade.
Liderança e Comunidade: Espaços de Ressurgimento
A TODXS desenvolveu o Fundo TODXS, um projeto que facilita o acesso ao microcrédito para pessoas trans e travestis, promovendo sua inclusão no ciclo de crescimento econômico. Diante da exclusão no mercado de trabalho, muitas pessoas trans optam pelo empreendedorismo, mas encontram falta de incentivos institucionais. O Fundo TODXS busca suprir essa lacuna por meio de microcrédito em forma de aporte semente, educação empreendedora para o crescimento sustentável e geração de renda para outras pessoas, promovendo um ambiente empresarial mais equitativo. O programa também visa impulsionar mudanças culturais nas organizações, ampliando o impacto social dos negócios apoiados e fortalecendo o papel ativo das pessoas trans na transformação do mercado e da sociedade.
Além disso, iniciativas como Casa Nem, Casa Miga, CasAmor Neide Silva e Casa Florescer acolhem e fortalecem pessoas trans, ressignificando suas vidas por meio do acesso à cultura, à educação e à profissionalização. Esses espaços têm sido fundamentais para transformar histórias que começaram na exclusão em trajetórias de protagonismo.
O Casarão de Luana Muniz & Fundação Sementes de Luana Muniz, além de moradia para travestis trabalhadoras sexuais, também tem na figura de sua atual liderança, Darla Muniz, uma voz que busca alcançar espaços antes negligenciados para a comunidade. Somando mais de 50 mil seguidores no Instagram e TikTok, Darla traz conteúdos importantes sobre a realidade das travestis e mulheres trans que ainda precisam recorrer à prostituição.
Projetos como o TransEmpregos também são vitais. A plataforma, fundada por Maite Schneider, Márcia Rocha, Laerte Coutinho e Ana Carolina Borges, cria pontes entre empresas e pessoas trans, ampliando o acesso ao mercado de trabalho formal e abrindo portas que antes pareciam inalcançáveis. É através de projetos como o TransEmpregos que, além da presença em redes sociais como Instagram e TikTok, as pessoas trans também se destacam no LinkedIn, compartilhando suas experiências e perspectivas profissionais. Sendo Maite Schneider, inclusive, LinkedIn Top Voice 2019.
Mais do que Resiliência, uma Nova Narrativa
Ao olhar para as travestis, sejam trabalhadoras sexuais ou não, é essencial enxergar histórias que ultrapassam os estigmas e destacam suas contribuições para a sociedade. Seus passos têm sido fundamentais para transformar o silêncio em presença, ocupando espaços no empreendedorismo, na produção de conteúdo e em projetos sociais, ressignificando trajetórias e ampliando horizontes.
Embora a prostituição faça parte de uma realidade histórica, ela não define quem essas mulheres são. A potência das travestis reside em sua capacidade de se reinventar, apoiar umas às outras e construir novos mundos onde dignidade e protagonismo sejam centrais.
Para além dessas histórias, cabe a cada pessoa e instituição um papel essencial na mudança dessa narrativa. Transformar a realidade exige desconstruir preconceitos e criar oportunidades. A TODXS Consultoria pode ser uma aliada nessa jornada, oferecendo treinamentos e jornadas de desenvolvimento para impulsionar mudanças estruturais, promovendo um futuro mais inclusivo e justo para todas as pessoas. Entre em contato conosco via consultoria@todxs.org.
Travesti, pesquisadora, professora e analista de DEI. Graduada e mestranda em Artes (UEMG/UFMG) e Especialista em Gestão da Diversidade nas Organizações (UNISE).
Revisão textual por Amanda de Moraes, Judá Nunes e Rô Vicentte