O quanto de pluralidade tem na diversidade?
Quando se entra no mês de novembro, muitos posts sobre a Consciência Negra são publicados, inclusive os que relacionam a temática ao mercado de trabalho. Não é à toa: segundo o IBGE, em 2022, pessoas brancas ganharam 64,2% a mais que as negras. Mesmo quando se comparou por escolaridade, pessoas brancas com nível superior completo ganharam 37,6% a mais do que negras com o mesmo grau de instrução.
Porém, o que eu gostaria de acrescentar a esse debate é que esses resultados são relacionados à empregabilidade cisgênera, sem levar em conta que a nossa identidade de gênero (e também a sexualidade) divergir do que é aceito é um fator de exclusão.
Da mesma forma, ao pesquisar sobre questões LGBTI+ no mercado de trabalho, também não encontra-se dados sobre a racialidade das pessoas envolvidas. Num estudo da To.gather desse ano, em um universo de cerca de 1,5 milhão de trabalhadores, apenas 4,5% são pessoas LGBTI+. O número de trabalhadores trans não chega a 0,5%. Novamente, adiciono o questionamento: quantas dessas pessoas são negras?
O que podemos concluir unindo esses dados?
Bem, eu trabalho com questões de diversidade e inclusão para o mercado de trabalho há anos, e sempre vejo pessoas negras cisgêneras falando sobre racialidade e pessoas trans brancas falando sobre transgeneridade. Fica a impressão de que pessoas trans negras são “diversas demais” para esse tipo de conversa. Eu, enquanto uma, praticamente nunca recebi convites para falar em lugares em que o foco era a negritude.
Assim, observo que quando se fala em “inclusão de pessoas negras” fica implícito que se trata de pessoas cisgêneras, e quando se fala em “inclusão de pessoas trans” fica implícito que a maioria dessas pessoas são brancas.
Até dentro dos grupos de diversidade: uma pesquisa da Tree Diversidade e do TopRH, realizada em 2021, apontou que a maioria das pessoas que lideram grupos de diversidade nas empresas é branca (51,1%), mulher cisgênero (75,7%) e heterossexual (63,8%).
Sendo assim, percebemos que a inclusão presente no discurso de muitas empresas não se reflete na prática, até mesmo no campo da diversidade somos excluídos de maneiras diferentes. Nos fragmentam, incluindo partes de nós, mas não nossa totalidade.
Raça ou gênero: o que vem primeiro?
Foucault criou o conceito de “dispositivo de sexualidade”, que se refere ao conjunto de práticas, discursos, leis, instituições, enunciados científicos e relações de poder que se constróem em torno da sexualidade humana — incluindo o dito e o não dito, o consciente e o inconsciente —, que sustenta e é sustentado pelo o que a sociedade entende como “normal” e “anormal” dentro desse campo.
Inspirado nele, Sueli Carneiro criou o “dispositivo de racialidade”, que pensa o conceito de racialidade também como causa e consequência de todos esses fatores e entende como esses dispositivos produzem uma ideia de raça, naturalizando a divisão da sociedade entre quem tem privilégios de raça e quem são as pessoas oprimidas por esse mesmo sistema.
Trouxe esses dois conceitos para pensarmos como ambos os dispositivos cooperam para trazer uma noção de quem é a “pessoa ideal” para a nossa sociedade: branca, cis e hétero (e sem deficiência). Os dois dispositivos funcionam juntos: não basta ser cis e hétero, deve-se ser branco. Da mesma forma, não basta ser branco, deve-se ser cis e hétero.
Não há como “separar” essas duas opressões, nem na teoria nem na prática: minha experiência como LGBTI+ é constituída pela minha negritude e vice-versa. Eu não sou uma pessoa LGBTI+ e negra, sou uma pessoa LGBTI+ negra. Os dois ao mesmo tempo. Percebem a diferença?
Portanto, ainda que muitas pessoas insistam em hierarquizar essas opressões, buscando estabelecer uma prioridade em qual problema devemos resolver primeiro, esse movimento sempre será falho, porque não compreende as pessoas em sua completude.
Interseccionalidade enquanto palavra chave
A única forma de entender a diversidade é partindo do princípio que a interseccionalidade deve ser a ferramenta para compreender tudo que nos compõe. É muito além de “preencher uma cota” colocando uma pessoa negra ou uma pessoa trans no seu time, é buscar entender o quão complexos são os dispositivos e quais são as nossas responsabilidades coletivas para lidar com essa questão.
Em relação às organizações, gosto de pensar em três pilares: contratação, ambientação e permanência. É necessário que a diversidade faça parte dos valores da empresa e, consequentemente, das pessoas colaboradoras também — e que elas saibam a razão por trás de valorizar esse aspecto. Quando selecionamos pessoas diversas, há um impacto também na diversidade de ideias. Sabe quando você vê uma propaganda e pensa “Meu Deus, como ninguém avisou que isso iria gerar um cancelamento na internet?”? É justamente porque muitas vezes todas as pessoas que trabalharam nesta campanha tem experiências de vidas semelhantes e aquilo não passou pela cabeça de ninguém.
Falando de interseccionalidade, isso já começa nos processos seletivos. Mesmo os voltados para o público negro, existe algum viés que excluiria pessoas negras LGBTI+? Existe a preocupação de um campo para nome social? Da mesma maneira, nos que são voltados para pessoas LGBTI+, existe a escolha por pessoas negras?
Na ambientação e permanência, vale a conversa entre as pessoas colaboradoras para a conscientização do que é interseccionalidade, a interação entre grupos de diversidades diferentes e a valorização das experiências únicas de pessoas que têm muita capacidade mas, por preconceito, muitas vezes não conseguem acessar esse espaço.
No âmbito pessoal, acredito que o primeiro passo seja se localizar na questão, entendendo que você pode ser parte dessa luta ainda que não seja necessariamente uma pessoa LGBTI+ negra. Essa ação não deve vir com culpa, mas como um chamado para agir na prática: existem pessoas diversas na sua vida? Caso não, você consegue pensar nos motivos? Consegue pensar em meios de incluir essa temática no seu dia-a-dia com livros, filmes e séries? Consegue citar um influencer negro e LGBTI+ que fale sobre um assunto que te interesse, por exemplo? Não falamos só de LGBTI+fobia e de racismo, podemos falar de quaisquer temas. Nós existimos de forma plural e, se não chegamos até o seu algoritmo, talvez isso tenha uma razão.
Vamos juntos construir um Novembro Negro que seja de fato diverso e inclusivo?
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Nick Nagari é trans não-binário, bissexual, autor do livro “Essa história não termina aqui” e graduando em Ciências Sociais na UNICAMP. Em 2021, ganhou uma moção de homenagem da Câmara dos Vereadores de Niterói por sua militância trans.
Nick escreve para a campanha A História É Negra! da TODXS desenvolvida em alusão ao Mês da Consciência Negra com o objetivo de reconectar à ancestralidade negra por meio da contação de histórias de pessoas ou de reflexões que ocupam espaços no presente e constroem um futuro mais justo e inclusivo. Convidamos Nick para instigar reflexões sobre interseccionalidade entre marcadores sociais junto ao nosso público e agradecemos pela parceria e valiosa contribuição com a TODXS!
Referências:
Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser – Sueli Carneiro