afeto também é um lugar

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um dos mais significativos exercícios contracoloniais de amor que podemos fazer, enquanto pessoas negras, é sonhar o autoamor como tecnologia radical de bem-viver

afeto também é um lugar desde nossos corpos, nossas subjetividades, nossas experiências. pensar afeto como território-corpo, no mundo colonial, é pensar em formas de tornar o afeto cada vez mais preto — ou, ainda, de tornar cada vez mais nítidas as formas pelas quais o afeto preto se planta, se desenvolve, se manifesta.

o autamor pode ser um exercício contracolonial muito significativo, especialmente quando consideramos que uma uma das principais formas de dominação que o racismo estrutural impõe às pessoas negras é o auto-ódio. da negação da humanidade dos traços físicos até a interdição da beleza — tratada como atributo exclusivamente branco no panorama visual do racismo estrutural — somos ensinades a não nos amarmos desde muito cedo.

e se esse ensinamento é uma das formas mais contundentes de manutenção das violências raciais contra nós, desaprender o auto-ódio e aprender o amor por nós, individual e coletivamente, pode ser não só uma estratégia de sobrevivência, mas, ainda, uma forma de viver fora das cartilhas coloniais branco-supremacistas do racismo estrutural.

no entanto, nem sempre é fácil transformar o desejo de autoamor em práticas de autocuidado, pois também é próprio da colonialidade esperar de nós apenas servidão. para a estrutura racista colonial, só servimos quando servimos e enquanto servimos — uma lógica herdada dos 300 anos de escravização que lapidaram as psiquês da branquitude para esperar de nós fixação nos lugares de poder hierarquizados que o racismo definiu, para nós mas também para pessoas brancas.

uma das manifestações de autoamor e autocuidado mais bonita e significativa que tenho pesquisado é o sonhar preto, sexual-dissidente e desertor de gênero. o que nosso tempo de descanso nos permite manifestar em termos de sonhar futuros pretos que desorbitam as lógicas coloniais de servidão negra em prol da branquitude?

e como os sonhos que temos acordades — desde os desejos mais materiais por carinho, por prazer, por gozo, por fartura; até os devaneios que manifestamos em nossas produções artísticas que, guiadas pela flecha onírica de desvelar o passado para além da historiografia oficial colonial rumo a um futuro autodeterminado — são capazes de nos paramentar com ferramentas de construir outros mundos, ou simplesmente nos realizam enquanto sujeites desse mundo em que sonhar é mais que um direito fundamental mas uma tecnologia ancestral de bem-viver?

no fundo, no fundo, o que estas palavras sonham é espraiar por todo canto o afã de uma mãe exausta que quer dormir mais pra sonhar, sim, mas sonha também acordada — enquanto velha o sono da cria que dorme uma soneca cheia de sonhos e escreve um texto sob encomenda e sente o cheiro de feijão cozido escapulindo da válvula da panela de pressão — que um dia minha filha e muites outres de nós, pessoas pretas nessa diáspora onírica entre o sonho e a maafa, ocupemos o lugar-território de nosso corpo-sonho a partir dos nossos próprios modelos de amor, de cuidado, de descanso.

sonho que nós possamos nos amar, nos cuidar, y descansar o bastante, pra sonhar ainda mais, porque

sonhos pretos acordam mundos avessos ao pesadelo colonial

sonhos pretos acordam mundos adversos ao pesadelo colonial

sonhos pretos acordam mundos alheios ao pesadelo colonial

sonhos pretos acordam mundos ancestros aos pesadelo colonial

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tatiana nascimento, não-binária, brasiliense, mãe da Irê. cantora, escritora, editora na padê (que não é cocaína) editorial – escrita preta/lgbtqia+. ressemantiza melodia, ruído, looping numa reengenharia em que o pensavento de sonhos, afeto, negritude, cerrado & mar aprofunda a vida. 17 livros publicados. finalista do jabuti 2022. idealizadora do primeiro Slam das Minas e da primeira formação sobre privilégio branco e branquitude no Brasil.

@tatiananascivento


tatiana nascimento escreve para a campanha A História É Negra! da TODXS desenvolvida em alusão ao Mês da Consciência Negra com o objetivo de reconectar à ancestralidade negra por meio da contação de histórias de pessoas ou de reflexões que ocupam espaços no presente e constroem um futuro mais justo e inclusivo. Convidamos tatiana para instigar reflexões sobre relações afetuosas entre pessoas negras ao nosso público e agradecemos pela parceria e encantadora contribuição com a TODXS!

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